dez. 2006.
Resumo: a Síndrome de Ehlers-Danlos, oriunda de defeitos genéticos da síntese e estrutura do tecido conjuntivoe colágeno, tem vários padrões de transmissão genética e exibe diferentes fenótipos e subtipos. Clinicamente, apresenta hiperextensibilidade e fragilidade cutâneas, ferimentos fáceis e cicatrização deficiente, além de hipermobilidade articular localizada ou generalizada. São indispensáveis Identificação e diagnóstico precoce para minimizar complicações, melhorando a qualidade de vida dos pacientes.
Histórico: O termo Síndrome de Ehlers-Danlos (SED) surgiu quando Edward Ehlers, dermatologista dinamarquês, em 1901, e Henri Alexandre Danlos, médico francês especialista em desordens cutâneas, em 1908, descreveram suas observações e delinearam os possíveis fenótipos para esse grupo de desordens.
A síndrome de Ehlers-Danlos, de etiologia ainda desconhecida, associa-se a um defeito genético do colágeno e alterações na síntese e estrutura do tecido conjuntivo. É uma doença genética com variável padrão de transmissão, de fenótipo heterogêneo, e talvez por isso não se tenha dados precisos de sua incidência na população, visto que ela é pouco conhecida mesmo por profissionais da área médica. Sua incidência estimada de uma pessoa afetada em cada grupo de cinco mil pessoas certamente subestima os números reais. Afeta igualmente todas as raças e ambos os sexos. Apesar de a doença estar presente ao nascimento, seus sintomas, quando percebidos, são identificados em idades mais avançadas.
Em sua forma clássica de apresentação, observa-se hiperelasticidade e fragilidade cutâneas, associada a hipermobilidade articular. Contudo, muitas outras formas de comprometimento são encontradas, como desconforto músculo-esquelético, predisposição para osteoartrite, sintomas gastrointestinais, oftalmológicos, cardiovasculares e mesmo obstétricos.
O colágeno é uma proteína multimérica, com 19 diferentes formas já identificadas, presente difusamente na composição do organismo, tendo ao menos 29 genes implicados em sua síntese, os quais estão localizados em 15 dos 23 cromossomos humanos. Valendo-se dessa informação, pode-se inferir que um vasto número de alterações genéticas gera um mesmo padrão fenotípico (heterogeneidade de lócus gênico) e que diferentes mutações em um mesmo gene causam condições clínicas diversas (variabilidade clínica).
O exemplo citado por Pyeritz, em seu trabalho Ehlers-Danlos Syndrome, publicado no New England Journal of Medicine, em março de 2000, expõe dados interessantes que ajudam a entender alguns aspectos particulares dessa síndrome. Segundo esse autor, a alteração do colágeno tipo III decorre de várias diferentes mutações no gene COL3A1, que desencadeiam a formação de procolágeno tipo III aberrante. Isso pode explicar em parte a ampla variabilidade fenotípica apresentada pelos portadores dessa síndrome.
Diversas mutações envolvendo genes distintos podem levar à SED, como COL5A1, COL5A2 e tenascin-X, bem como do gene COL1A2.
Na maioria das famílias cujo padrão de transmissão é autossômico dominante, a doença parece estar relacionada ao lócus que contenha os genes COL5A1 e COL5A2, mas nem todos os subtipos da doença apresentam seus genes implicados já conhecidos (CECCOLINI; SCHWARTZ, 2005).
Atualmente, 11 variantes da síndrome já foram identificadas, sendo que todas as formas apresentam as características clínicas típicas, que variam de intensidade, quais sejam: hiperextensibilidade cutânea, hipermobilidade articular, fragilidade tecidual, deficiência de cicatrização (cuja descrição clássica é de cigarette paper scars) e facilidade de sofrer traumatismos (STEINER; SCHAEFER, 2006). Apesar do diagnóstico ser inicialmente clínico, até 50% dos portadores da síndrome possuem um fenótipo difícil ou até mesmo impossível de ser classificado em um subtipo unicamente pela clínica. Por isso, em 1997, uma nova e simplificada classificação foi proposta. Tal classificação encontra-se no Quadro 1.
A pele de um portador da síndrome, por apresentar um aspecto mais delgado, torna os vasos superficiais mais visíveis. A alteração do colágeno torna essa pele hiperextensível , sendo esse um dos aspectos relevantes dessa síndrome. Outra peculiaridade é a fragilidade cutânea, geralmente evidenciada devido à facilidade com que ocorrem lacerações e rupturas diversas aos mínimos traumatismos, o que ocasiona cicatrizes anômalas, visto que o processo de cicatrização está comprometido, variando desde cicatrizes atróficas ou hipertróficas até queloides e hiperpigmentação da pele.
A hipermobilidade articular é a mais notável. Frouxidão ligamentar, presente predominantemente em pequenas articulações, particularmente em mãos, faz com que os portadores dessa síndrome sejam muitas vezes rotulados como “homem-borracha” ou “mulher-elástica”, figuras tipicamente circenses. Em virtude dessa frouxidão, tais ‘personagens’ podem apresentar artralgias, artrites, subluxações ou mesmo luxações. Apesar de esse ser o estigma articular mais importante, outros aspectos, nem sempre universais, são encontrados, como hipotonia muscular (algumas vezes cursando com hérnias recorrentes), dificuldade de deambulação (dificuldade para andar*) (suspeitada por quedas freqüentes), cifoescoliose, hálux valgo (joanetes*), pé plano e genu recurvatum (hiperextensão dos joelhos*) .
No trato gastrointestinal, a alteração mais freqüente é a diverticulose ( ocorrência de divertículos que são como bolsas que se produzem quando as membranas do cólon e do intestino grosso se inflamam, formando pequenos sacos laterais*). E, em casos extremos, rotura espontânea de vísceras abdominais, ou mesmo vasos (como, por exemplo, vasos esplênicos).
Do ponto de vista cardiovascular, existe uma riqueza de sintomas associados à síndrome. O prolapso de válvula mitral é um achado comum (especialmente nos subtipos clássico e hipermobilidade), e aterosclerose precoce e aneurismas (aorta abdominal, sistema nervoso central, artérias renais) também podem ocorrer. Quando os aneurismas são de SNC, podem dar origem a hemorragia subaracnóidea mesmo em pacientes jovens, sendo diagnóstico diferencial de malformações arterio-venosas. A presença de varizes precoces é outro achado por vezes encontrado. As alterações vasculares são mais freqüentes no subtipo IV, ou subtipo vascular, descrito por Barabas (1967). Esse é o subtipo de pior prognóstico, visto que as complicações citadas tornam a mortalidade bastante aumentada nessa forma clínica.
Alterações oftalmológicas acometem até 2% dos pacientes, manifestando-se na forma de estrias angióides, levando à baixa severa de acuidade visual e até mesmo à perda da visão central. Além disso, ceratocone, epicanto,miopia elevada, descolamento de retina, glaucoma, esclera azulada e subluxação de cristalino são patologias freqüentemente associadas (KANSKI, 2004). O ceratoglobo, uma doença rara em que aprotusão corneana é global, está fortemente associado ao subtipo VI (CHAMON; PORFÍRIO, 2006).
Complicações obstétricas podem ser observadas em portadoras de EDS. Portanto, um pré-natal adequado é imperioso, bem como um planejamento familiar. Rotura ou inversão uterina, rotura prematura de membranas ovulares com conseguinte parto prematuro, lacerações de canal de parto ou sangramentos uterinos são passíveis de ocorrer e raramente levam a suspeita diagnóstica pelo obstetra, por isso não se sabe a real incidência de tais complicações (NOMURA, SURITA,PARPINELLI, 2003).
Quadro 1: Classificaçao de Ehlers Danlos
Tipos | TIPO CLÁSSICO | TIPO HIPERMOBILIDADE |
Herança | Autossómica dominante ( AD) | Autossómica dominante ( AD) |
Nomenclatura Prévia | Tipo I, Tipo II | Tipo III |
Critérios Maiores | Hiperextensibilidade cutânea, cicatrizes atróficas, hipermobilidade articular | Pele (fina, macia, aveludada), hipermobilidade articular |
Critérios Menores | Pele fina, facilidade de sofrer traumatismos, pseudo-tumores moluscóides, hipotonia muscular, complicações pós-operatórias (hérnia), história familiar positiva de fragilidade tecidual: hérnia ou prolapso. | Luxações recorrentes, artralgias crônicas e/ou dor em membros, história familiar positiva. |
Tipos | VASCULAR | CIFOESCOLIÓTICO |
Herança | Autossómica dominante ( AD) | Autossômico Recessivo (AR)) |
Nomenclatura Prévia | Tipo IV | Tipo VI Deficiência de lisil-hidroxilase |
Critérios Maiores | Pele fina e transparente, fragilidade arterial/ intestinal ou ruptura, traumatismos extensos, face característica | Frouxidão ligamentar, hipotonia severa ao nascimento, escoliose, fragilidade progressiva de esclera ou ruptura de globo ocular |
Critérios Menores | Acrogeria (envelhecimento precoce), hipermobilidade de pequenas articulações, ruptura muscular/ tendínea, pé-plano, varizes precoces, fístula de seio carotídeo-cavernoso, pneumotórax, recessão gengival, história familiar positiva, história de morte súbita. | Fragilidade tecidual, facilidade em traumatismos, ruptura arterial, microcórnea, osteopenia, história familiar positiva. |
Tipos | ARTROCALASIA | DERMATOPARAXIS |
Herança | Autossómica dominante ( AD) | Autossômico Recessivo (AR)) |
Nomenclatura Prévia | Tipo VII A, B | Tipo VII C |
Critérios Maiores | Luxação congênita de quadril, hipermobilidade articular severa, subluxações freqüentes | Fragilidade cutânea severa, pele flácida e redundante |
Critérios Menores | Hiperextensibilidade cutânea, fragilidade tecidual com cicatrizes atróficas, hipotonia muscular, facilidade de traumatismos, cifoescoliose, osteopenia leve. | Pele fina, facilidade em traumatismos, ruptura prematura de membranas ovulares, hérnias (umbilicais e inguinais) |
Fonte: Beighton et al. (1998)
O diagnóstico de SED é baseado fundamentalmente nos achados clínicos e história familiar.A análise molecular pode evidenciar mutações específicas de genes da síntese de colágeno, especialmente nos subtipos vascular, dermatosparaxis e artrocalásia, onde serão evidenciadas alterações nas moléculas de colágenos em culturas de fibroblastos cutâneos, auxiliando no aconselhamento genético, mas não sendo realizado como rotina diagnóstica. O subtipo cifoescoliótico pode ainda ser identificado por meio de análise urinária (piridolina).
Não existe um tratamento específico que seja comprovadamente eficaz, fazendo com que o mesmo seja basicamente preventivo.Deve-se fazer um diagnóstico precoce para que futuras complicações possam ser assim previstas e evitadas. Exercícios com grande impacto sobre as articulações ou mesmo que possam causar lesões cutâneas são contra-indicados. Avaliação cardiológica é indicada rotineiramente, em particular nos portadores do subtipo IV. Exercícios para fortalecimentos musculares e tendíneos devem ser incentivados, até mesmo com o acompanhamento de fisioterapeuta, uma vez que gerarão uma maior estabilidade
das articulações, evitando assim luxações e outras conseqüências deletérias da hipermobilidade. Há benefício teórico da suplementação de vitamina C para esses pacientes, já que essa participa da síntese do colágeno, mas não há resultado comprovado cientificamente até o momento, e nem mesmo um consenso em relação a dosagem terapêutica. Apesar disso, estudos clínicos sugerem que altas doses de tal vitamina (1-4g diárias) por um período de um ano melhoraram o tempo de sangramento, a cicatrização e promoveram um aumento de força muscular. Outro ponto de relevância é o aconselhamento genético, devendo o médico prover informações detalhadas da doença e possíveis padrões de transmissão e implicações clínicas (STEINER;SCHAEFER, 2006).
*acrescentado ao texto nesta publicação
Fonte:http://74.125.45.104/search?q=cache:oaHaI27S4MUJ:seer.ucg.br/index.php/estudos/article/viewDownloadInterstitial/26/24+S%C3%8DNDROME+DE+EHLERS-DANLOS:+ATUALIZA%C3%87%C3%83O.&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=1&client=opera